Isabel, chocada, sentia as mãos que seguravam o pergaminho a tremer. Estava a revistar o escritório do pai e as suas cartas quando encontrara uma que se referia a ela dirigida à madre -superiora de um convento da região.
O seu pai caracterizava Isabel como indomável e completamente contrária a um casamento mas com tendência para o estudo se o tema a interessasse. Falava do seu antigo sonho de ser médica com o irmão antes de este morrer. E que queria que ela fosse integrada numa ordem onde fosse permitida a desenvolver essa veia.
Ele não tinha o direito de me fazer isto. Isabel sentia-se à beira das lágrimas e reprimiu-se e continuou a ler a carta. Com que então já era demasiado velha para ficar por casa? Eles iam ver…Isabel sentia-se traída, pois o pai nada lhe dissera como se ela não o tivesse o direito de decidir o seu próprio destino.
O seu dote estava numa bolsa que seria entregue ao convento como garantia de que seria aceite, e Isabel pegou na bolsa, que até era bastante pesada e enfiou-a no decote do vestido, assim como a carta que acabaria de ler no seu quarto.
Isabel tinha apenas uma irmã mais velha, uma total beta que sempre que a via incitava-a a bordar. Tivera um irmão mais velho que adorara e que estivera a estudar medicina mas ele morrera atacado pelo próprio doença que tentara tratar aos seus pacientes. Tinha dois irmãos gémeos mais velhos que quando a guerra começara se alistaram imediatamente e nunca mais os tinha visto. A irmã mais nova era um passarinho delicado e super romântica que era aborrecida até cair para o lado.
A única pessoa de quem Isabel verdadeiramente gostava era da tia meio louca que se encontrava trancada na torre norte. Era muito instável mas pessoas malucas eram divertidas. E Isabel ia muitas vezes fazer-lhe companhia. Era a única pessoa viva da família que não a fazia sentir uma estranha. Toda a família era loira ou ruiva e o cabelo de Isabel era preto corvo e tinha uns olhos esquisitos. Quando era criança pensava que a sua verdadeira família um dia viria e a tiraria dali mas foi crescendo e perdendo as fantasias.
Por isso Isabel foi ter com a tia para se acalmar. Talvez ela tivesse alguma ideia do melhor tipo de vingança para o seu pai. Ela e um convento não eram compatíveis.
Nada mesmo.
A tia estava a ler um livro, com o lume aceso, um copo de vinho tinto ao lado e a fumar um charuto. Tinha vestido um robe de cetim colorido e tinha o cabelo ruivo liso e comprido desatado. Via-se apenas uma parte da tatuagem que lhe cobria o peito e as costas. Um grande tigre. Ninguém sabia como é que ela a tinha arranjado nem como é que se mantinha com um aspecto tão jovem. Parecia pouco mais velha que a irmã mais velha de Isabel e não aparentava a sua meia-idade.
Ela levantou os olhos para a porta entreaberta quando Isabel bateu.
-Is! Que fazes acordada a estas horas?
- O pai e a mãe estão fora, logo, estive a tratar das coisas de sempre…- pronunciou Isabel com um sorriso malicioso.
A tia, Morgane, sorriu em resposta e chamou-a para se sentar ao seu lado deixando o livro em cima da mesinha que tinha o copo de vinho.
- Então, encontraste alguma coisa interessante?
-Depende do teu conceito de interessante. – respondeu Isabel. Morgane ergueu um sobrancelha expectante e o sorriso de Isabel abriu-se quando lhe entregou a carta. -Lê isto.
Morgane começou a ler cheia de curiosidade e não tardava nada tinha um ataque de riso que a fez bater na mesa com lágrimas a cair-lhe pela cara.
- oh céus! Não posso crer. O meu irmãozinho tem jeito para comediante! Nunca pensei! Tu num convento! Em menos de uma semana organizavas uma revolta ou então tornavas as freiras em sacerdotisas satânicas prontas para orgias!
Morgane esperou que ela se acalma-se. Achava que não era assim tão má, mas agradecia o voto.
Pegou no copo e bebeu enquanto a tia estava perdida de riso. Precisava de um plano.
Podia usar o dinheiro do dote e estabelecer uma vida independente com ele, mas era inevitável que esse dinheiro acaba-se. Para além de que fazer vida independente tendo dezasseis anos, solteira era um bocado difícil nesta sociedade chauvinista. Seria alvo de suspeita e se fugisse para depois tentar esse tipo de vida seria facilmente encontrada. Na verdade seria bastante estúpido. Existiam geralmente dois caminhos para uma menina de bem ou o casamento ou o convento. The end.
Considerando que ela não se via como uma menina de bem talvez pudesse tentar outro estilo de vida. Podia se juntar a um circo, ou a uma trupe de ciganos como dançarina. Isabel fez uma careta. Os seus pais considerariam isso como estando apenas a um passo de prostituição. E não estava com muita vontade de deixar o conforto em que vivia para viver em instalações decrépitas.
Podia fingir loucura, afinal a sua tia não tinha seguido nenhum dos dois caminhos, mas esta levava uma vida de reclusão, isto é, quando não estava desaparecida durante meses voltando depois num estado lastimoso e perturbado sem dizer onde é que tinha estado.
A existência da sua tia era um segredo bem guardado das autoridades, e dos amigos de grande calibre do pai. Para a sociedade ela desaparecera há muitos anos e nunca voltara. O pai achava que ela era uma mancha na sua honra. Na honra de toda a família. Dispensava-lhe criados e algum dinheiro e conforto desde que ela não o envergonha-se. Morgane não parecia sequer dar-se ao trabalho de o tentar envergonhar. Nem preocupar-se minimamente com o que supostamente estava a perder.
- Tia? - Isabel despertou para uma Morganne a olhar para ela fixamente, o ataque de riso passado há muito – Que se passa?
- Queres vir comigo?
-Onde?
-Para o outro lado. Está quase na altura de a passagem se abrir. Fazia-te bem uns tempos longe de casa, querida. E aí garanto que ninguém te encontrará.
Loucura será, então.
Mas era a primeira vez que a tia a convidava e ninguém alguma vez lhe conseguira arrancar uma palavra sobre as suas supostas viagens.
-Porque não? Pode ser divertido! – exclamou Isabel espreguiçando-se como um gato – Mas não sei nada sobre o nosso destino e quando voltasse o pai meter-me-ia na mesma num convento, por isso não sei se é a resposta – Isabel apoiou o queixo na palma da mão e encarou a tia – Como é outro lado?
A tia enregelou a fronte – Ele não me meteu a mim num convento…
-Pois, tia. Como é o outro lado? – repetiu Isabel.
Morgane mordeu o lábio por um momento há procura de palavras – É diferente daqui. As regras que nos regem não significam nada lá. Lá não somos nobres nem senhoras. Nem sequer humanos. Tu quando entras assumes a forma do teu alter-ego. É perturbante quando voltas porque tens que te habituar a ser novamente humana.
Isabel olhou para a tia surpreendida. Não sabia do que estava à espera mas certamente não era disto. Parecia acabado de sair de um livro de fantasia. Produto de uma mente divagante? Quem sabe…? Mas a tia parecia acreditar em cada palavra que dizia.
-Tia, tens noção de que pareces mesmo louca?
-sim-sorriu ela.- Estás assustada?
-Não- respondeu Isabel. -tem andado um pouco aborrecido por estes lados por isso agradeço a distracção. Qual é a forma do teu alter-ego?
-Um tigre.
-Ah! A tatuagem?
A tia abanou a cabeça – Isso é de outro sítio. De outra dimensão. Mas esse sítio é bárbaro pelos nossos costumes. – a tia encolheu os ombros
–Bem… pelo menos lá era humana.
-Então a passagem dá para vários sítios?
-Não exactamente. Dá para uma zona cinzenta, estilo limbo e lá tens que encontrar o teu próprio caminho mas se te perderes ficas lá para sempre. Cada dimensão tem uma porta diferente.
Isabel levantou-se de repente da cadeira ao lado da tia. – Isto começa-me a parecer muito arriscado, ficar louca e perder-me eternamente não me agradam. Pode ser que eu me sai-a bem se desaparecer na capital… e trabalhar como ladra de jóias ou algo do género.
-Não queres conhecer o teu tio? Ou os teus primos?
-Eles são pequenos tigrezinhos? – inquiriu sarcasticamente Is, mal contendo um sorriso.
-Não. Eles vivem na terra bárbara. Na verdade essa é um pouco parecida com a nossa dimensão mas não existe nobreza, só uma casta guerreira que serve a rainha. E ela própria é uma guerreira poderosa que se deve temer.
-Existem mulheres guerreiras?
-Sim. Mas tens que ser uma pessoa muito dura e o treino dá cabo de qualquer um. Os melhores guerreiros são aqueles que são treinados desde criança, no mínimo durante dez anos até terem um estilo próprio. Não sei se serás demasiado velha para dares uma guerreira decente. Mesmo com um ano de treino não poderás concorrer com os profissionais.
Isabel reflectiu durante alguns minutos enquanto olhava para a carta do pai. Não tinha nada a perder. Um convento era o pior sítio possível onde a podiam enviar - ela não tinham problema nenhum em estudar para medicina, desde que não lhe dissessem a cada momento o que fazer, o que pensar e em que Deus acreditar. A cidade era apenas a possibilidade dos desesperados e o primeiro sítio onde a iam procurar se ela desaparecesse, e fosse onde fosse a Tia "nas suas viagens" nunca ninguém a encontrava e ela voltava sempre de moto próprio, por mais tempo que ficasse desaparecida.
Isabel encarou a Tia e dobrou cuidadosamente a carta para a pôr onde a tinha encontrado - Eu vou consigo, Tia.
Morgane apenas sorriu