A última coisa que me lembrava era de ter os pés do Hugo na minha cabeça.
Seriously.
A moca dele estava sempre um ou dois segundos à frente da minha, e ele tava sempre a tripar.
Estávamos no meu quarto deitados cada um num colchão, a olhar um para o outro e a dizer o que estávamos a sentir. Estávamos também a passar a última ganza que ele tinha feito entre nós – uma combinação que nunca tínhamos tentado de Scorpion com Manba Negra.
Tens que entender que desde as 2 da tarde que estávamos a fumar várias coisa e deviam ser por volta das 11 da noite. Também estávamos a ver um filme Projecto X no meu computador.
Sinceramente, não me lembro quando o parámos de ver.. esquecemo-nos que estávamos a ver um filme?
Algo do género.
Anyway..
Estava tudo a andar à roda. Eu tinha uma cena no forno, comecei a stressar com isso e fui desligá-la – mundo a roda ou não.
Voltei. Fiquei na dúvida se tinha chegado a ir desligar o forno, porque tive um blackout de alguns segundos.
Sentia-me como se estivesse num livro e não conseguia lembrar-me de nada. Era como se eu estivesse sempre a desligar e a voltar a ligar a minha consciência. Eu disse-lhe isso:
-Hugo, isto é como se eu tivesse a ler um livro e isto fosse o livro, estou completamente concentrada aqui (neste momento) e não me lembro de mais nada.
E comecei a entrar em pânico porque não conseguia SAIR.
Depois parti-me a rir com a ironia da situação (perdoem-me mas não me consigo lembrar de qual era a ironia exatamente).
- Isto é tão fixe- disse eu
Pensem em tragicomédia.
Para quem ainda não reparou tenho um sentido de humor super distorcido.
De seguida tentei SAIR – imaginem uma pessoa psicologicamente a atirar-se contra uma parede de vidro.
Tentei várias estratégias.
Nenhum funcionou.
Não me lembro de maior parte delas.
O Hugo mexeu-se e agarrou-me:
-Que imagem é que tens de mim? – perguntou ele com um ar incrivelmente sério. Talvez ele acha-se que eu estava a ter o ataque de pânico por causa dele?
Eu olhei para ele como se ele tivesse perdido o juízo.
-Hã? A que propósito é que isso veio? – respondi eu.
Acho que me desatei a rir nesta altura e pouco depois a chorar que num uma madalena.
- Liliana, estás a ter uma bad trip, tens de beber um litro de água – afirmou o Hugo.
Primeira vez que me comecei a aperceber do que realmente se passava ou pelo menos que tinha um nome!
Eu olhei para ele e pus-me a ponderar. Ok, valia a pena tentar, mal não faria; realmente tinha um pouco de sede. Lembrei-me da posição das coisas que estavam em cima da mesa se bem que ir busca-las estivesse um pouco para lá de mim.
- Dás-me o copo de água que está em cima da mesa? – pedi
Bebi alguns golos de água e devolvi-lhe o copo.
-Liliana, diz-me o que se está a passar…o que é que tu sentes? Diz-me tudo – exigiu ele.
Era super irritante o facto de ele estar sempre a fazer perguntas. Sempre a perguntar o que é que estava a sentir on and on and on…
Como é que se pode pôr em palavras algo tão complicado como aquilo que se passava na minha cabeça? Posso tentar, mas ficará sempre aquém, uma visão pálida, algo muito menos do que realmente se passou..
Well, whatever, é melhor que nada.
Eu tinha dezenas de argumentos a passar-me pela cabeça, sobre desde o que responder ao Hugo a observações sobre o mundo ou sobre os livros que li.
Eu li centenas de livros na minha vida, há alturas em que parece que não faço mais nada, que sou apenas uma gigantesca base de dados.
Naquele momento conseguia-me lembrar de tudo e de nada ao mesmo tempo.
De tudo o que tinha lido, que normalmente está bloqueado – e ainda bem se não dava em maluca.
Mas o meu cérebro estava todo desorganizado.
Não havia um índice.
Os meus neurónios saltavam de ideia para ideia nos sítios mais estranhos numa sequência anárquica.
Naquele momento sentia-me como se fosse a pessoa mais inteligente à face da terra e a mais burra, simultaneamente.
Como é isso possível?
Facilmente.
Tudo isto e muito mais estava a passar-me pelo cérebro cheio de químicos, isto é só a ponta do icebergue.
Outro aspeto dessa consciência, era a parte que queria voltar ao normal, a que fazia estratégias para SAIR, que se ria com a situação e que chorava de frustração, desespero e o medo. Essa parte voltava então novamente a tentar. Tudo isto era um ciclo vicioso.
Eu tentei acalmar-me. Tentei proteger o Hugo do pior e voltar a tentar SAIR.
Mas nada, NADA RESULTAVA.
Estava a começar a ficar extremamente desesperada e a entrar em pânico.
É claro que sabia que aquilo não podia durar para sempre.
Tinha sido induzido pelo que tínhamos fumado, logo apartir do momento em que o efeito se embatesse eu voltaria ao normal, supostamente. Mas parecia que estava psicologicamente presa há uma eternidade.
Segundo o Hugo o problema foi termos misturado álcool. Essa parte da conversa surgiu quando fomos para a cozinha comer o que eu tinha tirado do forno no início da bad trip.
- Porquê é que achas que isto aconteceu? – inquiri.
- Não sei. Acho que não devíamos ter misturado álcool. O panache que bebemos com os caracóis ou a vodka preta durante a tarde.
Eu olhei para ele com discórdia.
- Com tudo o que passou achas que isto aconteceu há conta do álcool? – critiquei, bem, acho que nesta altura já estava uma cabra.
Para ser sincera, nessa altura culpava a pura quantidade de ganzas que tínhamos fumado.
Ele respondeu que sim.
- Quantas ganzas é que fumá-mos? Umas sete, não? – inquiri.
O Hugo abanou a cabeça – Umas quatro, acho eu..
Eu não concordava mas também não estava em condições para me pôr a contar.
Nessa altura em tentei contar melhor o que se passava na minha cabeça:
-Imagina que tens dezenas de personalidades. Todas essas personalidades fazem parte da minha personalidade geral, por isso é que ela está cheia de contradições. Por isso, é que muitas vezes pareço indecisa, em guerra comigo mesma ou pura e simplesmente maluca ou masoquista. Essas personalidades são todas EU. – fiz uma pausa para respirar fundo – Por isso é que as pessoas não são perfeitas e são contraditórias porque são todas uma fracção.
Naquele momento também me estavam a ocorrer esquemas matemáticos e equações para descrever o mundo.
A que me lembro neste momento é das mais simples: explicar a oscilação de um edifício, tendo como exemplo uma mesa e a cama. Com variáveis de altura, material usado e alicerces e a sua estabilidade.
Entretanto, estávamos na mesa da cozinha e preparávamo-nos para comer (na verdade, eu só respondia a ordens e pedidos de informação uma vez que a casa era minha, coisas como onde está a maionese e coisas assim)
- Já estás normal?- perguntou ele.
-Nepes, continuo presa – respondi com toda a honestidade do mundo.
Ele franziu o olhar – Presa aonde?
-A mim mesma – respondi.
- E isso é bom ou mau? – tentou perceber melhor ele.
Eu olhei para ele com crítica filosófica – Porque é que tudo tem de ser bom ou mau?
Ele continuou a olhar para mim à espera de uma resposta e eu acedi.
-Não sei. Eu posso dizer mau mas tenho falta de dados, vais ter de esperar que isto termine para eu fazer um balanço.
Naquele momento "fez-se luz" e eu apercebi-me que tudo era cinzento . Não me percebam mal não estou a dizer que só via cinzento. Estou a dizer que todas as cores no seu âmago são cinzentas. Não existem absolutos. Branco é apenas um cinzento mais claro. Preto é apenas um cinzento mais escuro.
Mas se pensarmos que Preto é a absorção de todas as cores, todas as cores que ele absorver são uma versão de cinzento.
Branco rejeita.
Preto absorve.
Preto é tudo.
Branco é nada ou é apenas algo que rejeita tudo o resto para além daquilo que é originalmente.
E não sei o que é originalmente.
Eu estava a pensar no meu inconsciente, e tinha dificuldades de percepção para dizer o que é que era. Como é que eu funcionava. Só podia fazer juízos. Só podia fazer juízos daquilo que experimentava e ouvia na minha cabeça (this looks so esquiso!)
Atenção, isto não é esquizofrenia. Muitas vezes, as pessoas têm discussões dentro de si mesmas que parece do bem e do mal, anjinho e diabinho em cada ombro.
Bem, eu não tinha anjinho e diabinho a murmurar-me aos ouvidos, eu tinha dezenas de argumentos, alguns muitos diferentes, outros apenas ligeiramente. Mas no fim, todos diferentes.
Era a perfeita democracia, and i wanted out.
Ninguém tinha mais poder que o próximo.
E era impossível agradar a todos ou a mais que um de cada vez.
E era uma grande merda.
O caos.
Havia apenas duas consciências que não entravam nessa brincadeira. Não tinham opinião. Essas duas consciências precisavam de uma terceira que viesse da multidão democrática , que tivesse uma opinião.
As duas consciência funcionavam como software. A primeira funcionava como software de arranque, o inconsciente. A segunda funcionava como um sistema operativo. A terceira que vinha da multidão democrática era a que decidia o que fazíamos. O problema era que aparentemente estávamos a meio de uma eleição e não havia ninguém no lugar da terceira.
E todas as minhas memórias estavam em pastas nesse computador.
Preciso urgentemente de fazer uma formatação.
O meu cérebro está sobrecarregado e precisa de fazer outputs e não mais inputs.
Ou preciso de uma bibliotecária para me organizar o cérebro.
Ou preciso desesperadamente de parar de ler.
Eu estava a contar as minhas conclusões ao Hugo, assim do nada e a maravilhar-me com elas, a sentir-me bué inteligente.
- Loooooool. Isso parece a cena do pai, do filho e do espírito santo. O aspeto tripartido – observou ele
-ya- respondi – Não é fantástico? Nunva tinha tido um contato tão grande comigo mesma!
Ok. Voltando à cozinha, quando ainda estava a tentar sair de mim mesma e o Hugo estava sempre a fazer perguntas , pedi para ele se calar para eu conseguir pensar e conseguir concentrar-me no que se passava no meu cérebro.
E depois ele disse que ficava cá a dormir porque eu estava demasiado mal para ser deixada sozinha e que ía embora de manhã. Eu disse ok e que também me ía embora amanhã de manhã e que apanhávamos o mesmo táxi.
Acabámos de comer (eu não comi quase nada porque estava demasiado ocupada com a minha guerra civil psicológica no meu pequeno país), deixamos a coisas como estavam e fomos para o meu quarto. Decidimos quem ficava aonde e eu pus-me a tirar as coisas que estavam em cima da cama.
Eu acho que o Hugo me gravou nessa altura. Eu não conseguia sorrir, nem ser simpática nem nada do género. Limitei-me a olhar para ele e a continuar o que estava a fazer (que era limpar a cama da tralha toda).
Não me despi. Era o tipo de coisa que parecia exigir demasiado esforço de mim naquele momento. Enfiei-me debaixo dos lençõis.
O Hugo adormeceu no colchão dele e começou a ressonar à força toda.
Eu comecei a ficar mal disposta e sentei-me na minha cama a olhar para a frente.
Acho que o tempo passou e não dei por ele.
Decidi que tinha sede e fui à cozinha beber água.
Sentei-me na cadeira e acho que adormeci com a cabeça em cima da mesa, acho que o desconforto do meu estômago diminuía se ele estivesse mais ou menos direito.
Depois acordei? Não tenho a certeza se estava a dormir ou se era um black out.
Fui para a cama, novamente.
Foi má ideia.
Senti pela primeira vez vontade de vomitar.
Fui a correr para a casa de banho. Tentei vomitar mas deu-me uma dor tão grande no peito quando tentei que me assustei e decidi que era melhor não vomitar.
Parecia que o gás do estômago encontrava resistência e não rebentava quando devia e depois fazia demasiada pressão (era aí que doía)
A dor era tanta que eu achava que ía morrer se voltasse a tentar vomitar.
Cinco segundos depois estava a vomitar para o lavabo. Tentei diminuir a dor rebentando o gás gradualmente (não faço ideia como o fiz).
Seja como for, no fim, consegui entupir o lavabo como uma coisa cor de rosa nojenta que tinha de sair dali. Pus-me a limpar a wc.
Nesta altura, já me sentia melhor e sentia-me nojenta e cheia de calor.
Por isso fui buscar um pijama de Verão (com cuidado para não acordar o Hugo) e fui tomar banho.
Quando me deitei comecei a ficar paranóica com as velas acesas e apaguei-as e fechei a janela para ninguém entrar pela casa a dentro.
Depois usei meditação para acalmar e adormeci!